É muito comum o “diagnóstico” de DTM muscular em função das dores e da tensão nos músculos da face, principalmente se não for encontrada nenhuma lesão na ATM em si, ocorrendo um reforço ainda maior na ideia de que o problema  é “apenas muscular”!

Bom, a palavra diagnóstico no parágrafo acima está entre aspas porque quem acompanha aqui o blog sabe que esta distinção entre muscular e articular reserva uma série de problemas que já discuti aqui: DTM muscular vs articular.

Nesta postagem vou exemplificar com um caso clínico real o quanto é importante monitorar as respostas neurofisiológicas  para aumentar as chances de sucesso em um tratamento.

Caso clínico.

GildeciA paciente se apresentou com um quadro de dor crônica, há mais de 15 anos, de início descrito como dor e tensão na face,  na região dos masséteres, dor de cabeça e na nuca e que terminava por doer nas têmporas, testa e olhos. Relata também apertamento dentário. Fazia uso frequente de analgésicos, com controle parcial da dor de cabeça, mas não a da face.  Passou por múltiplos tratamentos: placas, jig, desgaste oclusal, laser, ultrassom e ortodontia sem resultado gerando um grande desânimo em seguir com tratamentos para a ATM. Para piorar, posteriormente apareceram  tontura, dor nos ouvidos e  zumbido, privando-a de atividades habituais mesmo em período não relacionado ao estresse. Entretanto relata que o estresse costuma desencadear o quadro de dor, mas não a tontura. Numa escala de zero a dez onde o dez seria uma dor insuportável e zero a ausência de dor, marcou nove de maneira diária, ao final da tarde e dor de intensidade quatro a cinco em outros momentos!

Gildeci Escala da dor

Algumas expressões usadas por ela:

“ É dor o dia todo. Sinto pular o osso quando estou mastigando ou falando. A dor piora com a fala e com a risada. Tenho dificuldade para mastigar alimentos mais duros, que é quando sinto ‘pular’ a mandíbula, parece que vai cair.”

Entretanto, como as dores dela se concentravam nas regiões dos músculos e não se queixava de estalos, crepitação ou limitação da abertura da boca nem dor articular, o modelo de diagnóstico “clássico” (como o RDC-TMD), que está baseado simplesmente na presença de sinais e sintomas, levou ao diagnóstico de DTM muscular, resultando nos seguintes tratamentos por quais ela passou: placas, jig, desgaste oclusal, laser, ultrassom e ortodontia.

  • As placas oclusais
    • Gildeci splint michiganEla usou uma placa chamada de “miorrelaxante” (do grego myo-, músculo), que parte do princípio de que os músculos estão hiperativos, partindo do pressuposto que o estresse geraria um ciclo vicioso: estresse> tensão > hiperatividade > redução da  circulação sanguínea >menor oxigenação > DOR > aumento do estresse. Essa é uma das premissas da escola biopsicossocial que, entretanto, desde a década de 1990 já se sabe que esse ciclo vicioso da dor (embora pareça lógico e plausível) está equivocado. Mais à frente você irá ver porquê!
    • Imagem apenas ilustrativa

      Imagem apenas ilustrativa

      Ela usou uma placa tipo Jig, que é um dispositivo que se prende apenas nos dentes da frente, deixando os de trás “no ar” sem contato uns com os outros. Dentre as finalidades do Jig, havia a ideia de desprogramar a mandíbula, deixando-a buscar uma posição de conforto muscular que fosse independente do contato dentário. Essa é uma técnica muito usada na escola gnatológica e, eventualmente, por alguns profissionais da biopsicossocial.

  • Procedimentos oclusais
    • Ela passou por desgastes seletivos e por ortodontia, ambos são técnicas irreversíveis oriundas da escola gnatológica e contém a ideia de fazer os dentes se encaixarem (ocluírem) da melhor maneira possível, pois com a oclusão correta os músculos funcionariam corretamente.
  • Desativação de pontos-gatilhos (trigger points)
    • Gildeci trigger pointsOs músculos mastigatórios dela, especialmente os masséteres, apresentavam-se doloridos à palpação com pequenas áreas mais endurecidas que muitos  chamam de pontos-gatilhos ou trigger points (em inglês). Tipicamente, quem segue a escola biopsicossocial atribui a estes pontos-gatilhos a gênese da dor muscular crônica , passando a ser imperativo desativá-los. Isto é feito com várias técnicas sendo o agulhamento seco (dry needling) uma das mais populares. Entretanto, faltam evidências científicas atuais que coloquem os supostos pontos gatilhos como causa da dor crônica (mais provável serem consequência). Na paciente foram feitos o laser e o ultrassom na tentativa de desativar os tais trigger points

Bom, quando ela chegou para mim,  uma das prioridades era investigar a presença de lesões intra-articulares para saber se poderiam justificar em algum grau a situação. Eis o que encontrei (imagens de ressonância magnética):

RM Gildeci

Côndilo em vermelho; disco em azul e contorno da fossa articular em laranja

Como se pode ver, as duas ATM possuem problemas. A da esquerda, o côndilo está comprimindo a parte posterior, colapsando espaço articular e fazendo com que o disco se desloque ligeiramente para frente. Já na ATM direita, ocorre uma compressão num único ponto quase no centro do disco resultando em sua perfuração.

Essa lesões fazem com que o sistema nervoso central (SNC) iniba o recrutamento muscular, na tentativa de evitar ainda mais pressão do côndilo sobre os tecidos lesionados. Isso pode ser confirmado por meio de palpação clínica da musculatura e mensurado por meio de eletromiografia. Veja abaixo o resultado dela:

Gildeci EMG 1A área da coluna verde marca justamente o momento que pedi ao paciente para apertar os dentes (ocluir) com força. Veja  que a atividade dos masséteres direto e esquerdo (linhas azuis)  e dos temporais (linhas amarelas) são muito, mas muito baixas mesmo. No quadro da direita, na coluna verde que marca os valores do momento de oclusão é possível ver os valores de recrutamento muscular (em microvolts – µV), sendo que a dos masséteres é pouco mais que o valor que estava durante a fase de boca aberta (coluna lilás), momento este que eles sequer devem funcionar, afinal são músculos da oclusão, não da abertura.

Bom, agora veja o que acontece, quando eu posiciono a mandíbula de maneira a deixar mais espaço para ATM, o que chamamos de descompressão:
Gildeci EMG 2

Agora, a coluna lilás é a oclusão e as demais são posições com rolinhos de algodão colocado entre os dentes em distintas partes da boca. Com isso limitamos o sobre-fechamento da boca, impedindo o côndilo de comprimir as estruturas internas na intensidade de antes. Observe que os valores dos masséters (linhas azuis) salta de 4,4µV e 9,8µV para valores como 76,6µV na coluna azul para o masseter direito e 137µV na coluna amarela para o esquerdo!!!

Isso significa que a dor muscular está ocorrendo por HIPOFUNÇÃO e não hiperfunção como na teoria do ciclo vicioso da dor, base da teoria biopsicossocial. Mas por quê a musculatura fica tensa e, por vezes, enrijecida à palpação se não está contraída?

muscle pump effectPorque esse estado de hipofunção está relacionado a uma menor drenagem linfática que depende em sua maior parte dos períodos de contração e relaxamento dos músculos. Ao contrário do sistema cardiovascular, o sistema linfático não é um circuito fechado bombeado por um propulsor como o coração. A circulação da linfa ocorre devido ao peristaltismo (uma espécie de contração ondulatória dos vasos linfáticos semelhante a um movimento de ordenha) e de contração dos músculos esqueléticos adjacentes, bem como da pressão arterial próxima. Como se pode ver aqui neste vídeo: https://youtu.be/1fHgUW0I06k

Com a hipofunção também ocorre um menor fluxo sanguíneo e consequentemente menor oxigenação, que resulta em  DOR MUSCULAR, fenômeno facilmente documentado na termografia infravermelha, que demonstrarei mais à frente nesta postagem.

Bom, em termos de tratamento, essa a paciente teve sua musculatura desprogramada eletronicamente por meio de um tipo especial de TENS, que ao contrair e relaxar repetidas vezes os músculos mastigatórios, geram uma drenagem linfática, bem como um silenciamento temporário da irritação neurológica causada pelas lesões da ATM, permitindo um posicionamento descompressivo da mandíbula. Esta posição é registrada com um tipo de silicone e depois transformada no dispositivo intra-oral (DIO), um tipo de órtese que irá manter a mandíbula nesta posição otimizada durante suas funções.

Gildeci RNF

Desprogramação e registro intermaxilar

Um tempo depois do uso do DIO, voltamos a medir e essa foi a resposta do organismo:

Gildeci tscan

As imagens da esquerda mostram os contatos oclusais do DIO, medidos em um sensor computadorizado, enquanto que a direita mostra o recrutamento dos músculos

Veja que os músculos temporais e masséteres que estavam completamente inibidos durante o fechamento da boca passaram a funcionar. Os masséteres direito e esquerdo, por exemplo, que funcionavam na primeira eletromiografia com apenas 4,4µV e 9,8µV respectivamente,  podem  agora funcionar com 94µV e 66µV! Isso equivale a dizer que estavam funcionando com apenas 4,7% e 15% da capacidade atual, ou seja, estavam extremamente inibidos!

Na imagem térmica a seguir, é possível ver a mudança entre a situação inicial e a atual. Como a temperatura está diretamente relacionada ao fluxo sanguíneo, o aumento da temperatura na área dos masséteres indica justamente a melhora no fluxo sanguíneo e consequentemente uma melhor oxigenação da área, que é o que gera a redução da dor:

Gildeci termo 2

Na escala de cores é possível ver que o branco é o mais quente, seguido do vermelho, sendo que é exatamente isso que se observa nas áreas do temporal e masséteres entre a imagem inicial à esquerda e a atual à direita.

Enfim, isso ilustra o que é efetivamente medir parâmetros neuofisiológicos para saber  como está evoluindo o tratamento.

E então o caso está finalizado?

Não.

Não é só “colocar uma placa” e pronto… Este caso está no meio do tratamento. Veja, por exemplo, que um novo teste do posicionamento mandibular revela que ainda é possível melhorar mais a atividade muscular:

Gildeci EMG 3Ao se comparar a primeira coluna em lilás com as demais é possível verificar que ainda é possível progredir e isso bate com o EXAME FÍSICO dela bem como a ANAMNESE de acompanhamento.

O ponto chave aqui é que sabendo como os sintomas estão se relacionado com os fenômenos fisiológicos, podemos decidir como fazer as correções, neste caso, será por meio de recalibragem do dispositivo.

Neste caso em particular também tivemos de trabalhar com outras variáveis, como nutrição e outras questões sistêmicas relacionada ao diagnóstico.

Veja aqui o depoimento da situação atual da paciente:

Agradecimento especial à Gildeci, que permitiu compartilhar sua história pessoal. Obrigado Gildeci!